Ao contrário da Lei Federal nº 8.666/1993, a Nova Lei de Licitações – nº 14.133/2021 -, proporcionou uma abordagem ampla à etapa de planejamento, inovando ao abordá-lo como princípio de aplicação da norma, conforme expresso em seu art. 5°.
Segundo Marçal Justen Filho1, o princípio do planejamento significa o dever de previsão das ações futuras, abrangendo inclusive eventos não relacionados diretamente à atuação administrativa, de modo a adotar as providências mais adequadas e satisfatórias para a realização das finalidades pretendidas.
Uma das formas de se materializar referido princípio foi estipulando-se, expressamente, a fase preparatória do certame licitatório, que engloba desde a identificação das necessidades a serem atendidas até a inclusão da contratação no Plano de Contratações Anual, garantindo que esteja alinhado com o planejamento geral da Administração e concentrando-se na obtenção de resultados que atendam aos interesses públicos de maneira garantida.
A partir deste contexto, passemos a analisar o Plano de Contratações Anual, introduzido ao cenário da Administração Pública através da Nova Lei de Licitações que, ainda que mencione a “possibilidade” e não obrigatoriedade de sua elaboração, exprime, em diversos momentos, que a realização do referido instrumento de planejamento é imperativa.
Pois bem. O Plano de Contratações Anual é tratado no inciso VII, do caput do art. 12, da Lei Federal n° 14.133/21, o qual diz que “a partir de documentos de formalização de demandas, os órgãos responsáveis pelo planejamento de cada ente federativo poderão, na forma de regulamento, elaborar o Plano de Contratações Anual, com o objetivo de racionalizar as contratações dos órgãos e entidades sob sua competência, garantir o alinhamento com o seu planejamento estratégico e subsidiar a elaboração das respectivas leis orçamentárias”.
Consubstancia-se, então, essencialmente, em quantificar as licitações que serão incluídas e centralizar as compras, com o objetivo de reduzir a quantidade de processos licitatórios, baseando-se em uma compreensão mais precisa das reais necessidades da unidade compradora, levando em consideração as particularidades de cada situação.
A medida contribui com a redução de desperdícios e falhas, com o aprimoramento continuado da gestão de aquisições e contratos e, ainda mais importante, para conferir maior realismo à elaboração dos orçamentos.
De tal maneira, estaremos, supostamente, diante de compras e contratações mais eficientes, organizadas, econômicas e proveitosas para a Administração Pública.
Não há como deixar de mencionar que o planejamento anual depende de um Decreto Regulamentador, que traga as regras locais de aplicação deste planejamento, como já regulamentado no âmbito da União Federal, através do Decreto nº 10.947/2021.
A normativa supramencionada pode servir como estímulo para que outras entidades também busquem suas atividades regulamentares, no que diz respeito aos planejamentos internos, mas aqui talvez se encontre a principal ponderação que envolva toda a estruturação de planejamento objetivada: é preciso reconhecer a disparidade estrutural evidente entre as extensões do nosso país.
Isso porque, embasando-se em posicionamentos doutrinários, bem como nas atuais decisões postuladas pelos órgãos de controle, é possível se verificar que idealiza-se que referidos Decretos locais, efetivamente, contenham:
(i) a promoção de contratações centralizadas e compartilhadas, a fim de obter economia, padronização de produtos e redução de custos processuais;
(ii) o alinhamento do Plano com o planejamento estratégico de logística sustentável;
(iii) a preservação quanto ao fracionamento de despesas;
(iv) a sinalização de intenções ao mercado fornecedor;
(v) os prazos a serem cumpridos;
(vi) as hipóteses de contratações diretas;
(vii) uma série de obrigações, motivações e documentações para a realização do certame;
(viii) o desenvolvimento das fases recursais; dentre tantas outras estipulações.
Fato é que, no primeiro trimestre de cada ano, as áreas requisitantes devem informar quais contratações pretendem ser realizadas ou prorrogadas, no ano seguinte, cabendo ao setor de licitações analisá-las e encaminhá-las à autoridade superior, para devida aprovação.
Ocorre que a medida ainda é abarcada por diversas linhas subjetivas, não sendo capaz de impedir que os setores requisitantes demandem itens dos quais não necessitam ou de auferir que as contratações por ele abrangidas serão suficientes e enquadram-se na necessidade local.
Ademais, incluem diretrizes que apresentam, frequentemente, um nível de complexidade para os quais diversos segmentos nacionais não possuem capacidade técnica necessária para se realizar o planejamento da contratação, nos moldes exigidos pela nova legislação, seja para garantir mais recursos orçamentários para o ano subsequente, seja para satisfazer eventualidades.
Isso resulta no fato de que, pelo menos inicialmente, grande parte dos Planos propostos não conseguirá refletir efetivamente a capacidade financeira dos órgãos, falhando em alcançar o objetivo de orientar a elaboração das leis orçamentárias.
Além disso, essa situação pode prejudicar o planejamento das áreas de licitação nos anos seguintes.
Ademais, analisando-se a estipulação de um instrumento de tamanho porte, como evidencia-se no caso em comento, resta indiscutível que sua aplicação, elaboração e prática, dificilmente serão capazes de, efetivamente, padronizar as contratações nacionais.
Isso porque os entes federativos se diferenciam em diversos âmbitos, como territoriais, populacionais, econômicos, comerciais e, inclusive, culturais, devendo esses serem levados em consideração, inclusive, na fase preparatória dos procedimentos licitatórios.
Outro documento que integra a fase de planejamento das contratações públicas – e que passa a ser analisado -, é o Estudo Técnico Preliminar, que tem o objetivo de demonstrar a real necessidade da contratação, analisar a viabilidade de implementá-la, bem como instruir o arcabouço básico para a elaboração do Termo de Referência ou Projeto Básico.
Trata-se de ferramenta de planejamento que se consolidou, gradualmente, através da jurisprudência dos Tribunais de Contas e em normas regulamentares de licitações e contratações públicas, mas que ainda não estava em texto de lei federal e de aplicação nacional, para todos os entes federativos.
O tema fora expressamente incluído na Lei Federal n° 14.133/21, da seguinte forma:
Art. 6º Para os fins desta Lei, consideram-se:
[…]
XX - estudo técnico preliminar: documento constitutivo da primeira etapa do planejamento de uma contratação que caracteriza o interesse público envolvido e a sua melhor solução e dá base ao anteprojeto, ao termo de referência ou ao projeto básico a serem elaborados caso se conclua pela viabilidade da contratação;
[…]
E
Art. 18. A fase preparatória do processo licitatório é caracterizada pelo planejamento e deve compatibilizar-se com o plano de contratações anual de que trata o inciso VII do caput do art. 12 desta Lei, sempre que elaborado, e com as leis orçamentárias, bem como abordar todas as considerações técnicas, mercadológicas e de gestão que podem interferir na contratação, compreendidos:
I- a descrição da necessidade da contratação fundamentada em estudo técnico preliminar que caracterize o interesse público envolvido;[…]
§ 1º O estudo técnico preliminar a que se refere o inciso I do caput deste artigo deverá evidenciar o problema a ser resolvido e a sua melhor solução, de modo a permitir a avaliação da viabilidade técnica e econômica da contratação, e conterá os seguintes elementos:
[…]
V - levantamento de mercado, que consiste na análise das alternativas possíveis, e justificativa técnica e econômica da escolha do tipo de solução a contratar;
Nesse sentido, é possível verificar que o documento deve abordar a necessidade a ser atendida, os problemas a serem solucionamos, os benefícios que a contratação é capaz de gerar, os motivos que a justificam e os elementos caracterizadores do objeto da contratação, devendo ser envolvidos elementos sobre mercado, produto, custo-benefício, ciclo de vida do objeto e tantos outros aspectos a considerar na etapa de planejamento de uma contratação pública, seja ela licitada ou não.
Apesar de se traduzir em um dever legal, a elaboração do Estudo Técnico Preliminar ainda enfrenta desafios que os órgãos demandantes precisam superar, para que o documento, de fato, contribua para o aprimoramento das aquisições públicas, um deles é que ele deve ser feito por uma equipe multidisciplinar.
A qualidade do planejamento da contratação está intrinsecamente ligada à equipe encarregada de conduzi-lo.
Portanto, a seleção da equipe deve ser feita com extrema atenção, de modo que, em conjunto, os membros possuam conhecimento abrangente do arcabouço legal atual, da fiscalização pertinente, da solução a ser contratada, dos regulamentos internos do órgão que afetam a contratação e das práticas internas que podem influenciar o processo.
Nesse sentido, a designação da equipe de planejamento da contratação tem papel fundamental, sendo de extrema importância a atuação da governança do órgão ou entidade, garantindo que a equipe seja composta por profissionais multidisciplinares, com integrantes especializados e experientes em suas áreas de atuação, compondo-se com integrantes técnicos, administrativos e os requisitantes, capazes de construir um ETP apto a produzir uma autêntica e genuína consagração da seleção da proposta mais vantajosa para a Administração.
Não obstante, como se sabe, muitos são os órgãos que não possuem referida estrutura pessoal.
A falta de planejamento das contratações e a cultura reativa da Administração Pública, seja em decorrência da própria falta de planejamento seja em decorrência do inesperado aporte de recursos, também são elementos que dificultam a elaboração do ETP.
Um dos seus requisitos é que nele fique demonstrado que as aquisições estão alinhadas com o Plano de Contratações Anual – já abordado anteriormente, no presente artigo -, pelo potencial estratégico de que se reveste o PCA para as compras públicas.
Resumidamente, as contratações que não estão previstas no Plano de Contratações Anuais têm o potencial de resultar em desperdício de recursos públicos, uma vez que podem ser realizadas sem um planejamento adequado, o que pode levar a resultados ineficientes que não atendem aos interesses públicos de maneira eficaz.
Lado outro, para alguns juristas, essa sequência lógica de procedimentos preparatórios pode induzir ao planejamento reverso, tendo em vista que, o Estudo Técnico Preliminar, inicialmente previsto para encontrar a solução necessária, passa a ser moldado para encaixar-se em uma solução pré-definida.
Em suma, a probabilidade de realizar um estudo eficaz e completo é reduzida, tornando-se uma tendência de que o estudo seja usado apenas para justificar decisões específicas já tomadas anteriormente.
Ademais, novamente, auspicioso se faz mencionarmos a desproporcionalidade estrutural dos órgãos demandantes distribuídos entre os entes federativos, não sendo apropriado exigir-se, de forma taxativa, a utilização dos mesmos mecanismos por entes e/ou entidades que em tanto se divergem.
Nessa lógica, abrangendo agora todos os aspectos mencionados, no presente artigo, cabe, inclusive, uma análise mais assertiva quanto à necessidade de se incluir o seguinte questionamento:
As contratações públicas possuem, como um de seus princípios basilares, a igualdade – alicerçada à igualdade de competição entre os pretensos licitantes.
Não obstante, em diferentes aspectos do direito, a igualdade apresenta-se como multifacetária, podendo-se ser tomada tanto em uma perspectiva formal, quanto material.
Nesse sentido, por que não abranger, sob o âmbito das contratações públicas – para além da igualdade de competição entre os licitantes -, nova perspectiva quanto ao mencionado princípio?
Cabe a reflexão: a estipulação de diversos instrumentos de planejamento – dentre eles os aqui mencionados -, segmentados em diversas diretrizes e pormenores, de forma geral, objetiva, indiscutivelmente, auxiliar a contratação de bens e serviços, o controle de prazos e a transparência das contratações, mitigando riscos relativos ao atraso nos processos de contratações.
Entretanto, essa mesma imposição geral, analisada sob a ótica de um órgão demandante de menor porte, estrutura física e de pessoal e condições financeiras pode, em contrapartida, acabar por burocratizar e dificultar a obtenção do principal objetivo legislativo, qual seja, garantir a entrega efetiva e eficiente do bem e/ou produto à população, atingindo-se, de fato, ao interesse público local.
Há de se mencionar, então, a necessidade de se trazer à baila o Princípio da Equidade, no âmbito das contratações públicas.
Se o objetivo final do legislador é garantir que as diferentes coletividades (culturais, financeiras, territoriais, climáticas etc.) desfrutem dos serviços prestados pela Administração Pública local, de forma efetiva, não se pode deixar de considerá-las, no escopo preparatório do certame.
Nesse diapasão, a equidade significaria, também, impor obrigações distintas, a executantes distintos, de forma que ambos possam ter acesso aos mesmos resultados – interesse público local -, sendo referida premissa fundamental para validar-se, verdadeiramente, as diversidades alocadas em nosso país e as contratações passarem a ser, de fato – e individualmente -, efetivas.
Por fim, nota-se que a Nova Lei de Licitações passa a valorizar, ainda mais, os trâmites internos e anteriores à efetiva disputa licitatória, o que entende-se ser imprescindível para que licitações menos restritivas e mais bem planejadas e eficazes sejam promovidas pela Administração Pública.
Apesar de que, como qualquer mudança que advenha sobre o sistema, precisaremos acompanhar a adaptação dos órgãos (especialmente aqueles Municípios menores que ainda estão caminhando para uma estruturação e a efetiva aplicação da lei), com destaque para os entendimentos e orientações dos órgãos de controle, que certamente renovarão suas recomendações e trarão novas vertentes para a sua aplicação, posteriormente à vigência exclusiva do regime, cabendo a nós aceitar que a transição normativa levará seu tempo, sendo a implementação dos instrumentos de planejamento um dos principais aspectos a evoluir ao longo dos meses e anos.
- JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações Administrativas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 127. ↩︎